"F--k Spotify" ou escolha o seu veneno?
O CEO do Spotify agora também investe em tecnologia militar. Sabendo disso, ainda dá para acreditar que existe um caminho possível fora dessa lógica, para artistas e ouvintes? Ou tudo o que nos resta é escolher qual veneno parece menos nocivo?

Responda rápido: se você tivesse fundado uma empresa de tecnologia de streaming de música, que hoje representa 65% de streams do mundo e que anunciou recentemente recordes de assinantes e receita... E mais: se, além de ter idealizado, você fosse atualmente CEO dessa companhia global, que moldou hábitos de consumo, produção e promoção musical de toda uma indústria centenária - que, aliás, vivia um de seus piores momentos econômicos quando essa empresa surgiu - e, de quebra, acumulasse uma fortuna maior do que qualquer artista da música ao longo da história... o que você faria com todo esse dinheiro vindo da música?
Opção 1: trabalharia incansavelmente para que artistas, que alimentam diariamente sua plataforma, pudessem ser remunerados de forma justa e sustentável - uma demanda antiga e frequentemente exposta? Além disso, derrubaria bots, conteúdos ofensivos, enfim, contribuiria para que a indústria musical fosse lucrativa para todo mundo?
Ou, opção 2: usaria parte desse dinheiro, proveniente da música, para fundar uma empresa de investimentos, injetar milhões e milhões de dólares em uma startup militar e ainda assumiria a presidência dela?
Bem, Daniel Ek, fundador e CEO do Spotify, escolheu a opção 2. Por que não, né?

Em junho deste ano, foi anunciado que a Prima Materia, empresa de investimentos fundada por Daniel Ek (atual CEO do Spotify) e Shakil Khan (investidor da plataforma), liderou a rodada de financiamento Série D da Helsing, empresa europeia especializada em tecnologia de defesa com foco em inteligência artificial. A rodada arrecadou cerca de €600 milhões (aproximadamente R$ 3,5 bilhões), elevando a avaliação da empresa para €12 bilhões. Além da Prima Materia, participaram dessa rodada investidores já existentes como Accel, Lightspeed Ventures, Plural, General Catalyst e a fabricante sueca Saab, além de novos investidores BDT e MSD Partners.
“À medida que a Europa fortalece rapidamente suas capacidades de defesa em resposta aos desafios geopolíticos em evolução, há uma necessidade urgente de investimentos em tecnologias avançadas que garantam sua autonomia estratégica e prontidão de segurança”, afirmou Daniel Ek, fundador da Prima Materia e presidente da Helsing.
“A Helsing está em posição única, com sua liderança em inteligência artificial, para entregar essas capacidades críticas na inovação de defesa em todos os domínios. Ao redobrar nosso investimento, a Prima Materia reafirma seu compromisso de fortalecer a soberania tecnológica da Europa - uma ambição que a Helsing personifica perfeitamente.” [trecho retirado do site da Helsing].

Vale frisar que este não foi o primeiro investimento de Daniel & Sua Turma na Helsing. Isso também aconteceu em 2021 - ano de fundação da empresa -, poucos meses antes da explosão da guerra entre Rússia e Ucrânia (um festival de grandes coincidências). Na época, o aporte foi de cerca de US$ 100 milhões.
A Helsing nasceu em Munique, inicialmente desenvolvendo softwares, mas já ampliou sua atuação para a criação de drones, aeronaves e submarinos. A startup quer se tornar referência alemã e europeia em soluções tecnológicas militares, oferecendo plataformas que auxiliam decisões em combate com suporte de IA.
(fuck Spotify)



Posts das bandas King Gizzard e Xiu Xiu sobre a retiradas de seus respectivos catálogos do Spotify.
Organizações e artistas se manifestaram publicamente depois dessa notícia.
A banda estadunidense Deerhoof foi uma das primeiras a retirar seu catálogo da plataforma, ainda em junho. A ela se somaram os conterrâneos do Xiu Xiu e, mais recentemente, o grupo australiano King Gizzard & the Lizard Wizard. Este último anunciou um novo lançamento fora do Spotify com o enfático “(fuck Spotify)”, explicando a decisão em um story horas depois.
Muitos usuários também se mostraram alarmados e expressaram desejo de abandonar a plataforma nos comentários das dezenas de postagens sobre o assunto.

Mas a pergunta que pode nos rondar neste momento é: temos para onde correr? Em um sistema econômico que nos insere e aprisiona no centro de contradições, identificar uma companhia ética é uma missão árdua, especialmente na tecnologia. Por isso, bater o martelo sobre qual seria a plataforma de streaming mais justa, para quem assina e para quem cria, nos faz esbarrar no dilema de ter que "escolher o veneno menos nocivo", e não a cura.

A indústria musical se estruturou e alargou seus ganhos financeiros, abstraindo os problemas que iam se acumulando: a menor fatia para quem compõe, a misoginia e o racismo estrutural - para citar apenas os mais gritantes. Criar mecanismos sólidos e duradouros para que a base e o meio dessa pirâmide pudessem sustentar suas vidas - independentemente da mídia vigente - nunca foi a prioridade real.
Portanto, o que temos hoje é uma sobreposição de problemas, estruturais e propositalmente mantidos, num cenário em que as maiores gravadoras do mundo são acionistas da maior plataforma de streaming de música do planeta.
E não há sinais claros e, principalmente, duradouros de que nenhuma delas - plataforma ou gravadoras - deseje de fato confrontar essas barreiras que limitam, excluem e marginalizam uma parte massiva da indústria. Enquanto isso, o dinheiro que essa relação lucra agora também financia drones de guerra. Loucura, não é?
O mais insano de tudo isso é que, no fundo, sabemos que esse "para onde correr" é muito mais um ato coletivo do que apenas individual. Uma banda aqui ou ali sair da plataforma pode ser inspirador e até mesmo satisfatório, mas sabemos que nem todas podem ou conseguem fazer o mesmo - seja por questões financeiras, seja porque existe uma quantidade inimaginável de contratos com editoras, gravadoras e por aí vai.
Há exemplos emblemáticos, como o de Taylor Swift, que retirou seu catálogo do Spotify em 2014, em protesto contra os valores de royalties repassados a artistas e compositores, mas que acabou retornando em 2017. Joni Mitchell e Neil Young também deixaram a plataforma, há dois anos, como forma de protesto contra o contrato milionário entre o Spotify e o podcaster Joe Rogan, que propagava desinformação sobre vacinas contra a Covid-19. Ambos retornaram à plataforma no ano passado.
Essa via de mão dupla que vivemos é uma armadilha infinita. De um lado, temos o fã que vai para onde a música está; do outro, o artista, sobretudo o independente, que precisa ser encontrado, seja onde for - mesmo que em um catálogo com mais de 100 milhões de músicas. Então, quem sairia primeiro? Aliás, alguém quer sair?

Na virada do século XXI, as grandes gravadoras buscavam desesperadamente formas de tapar o buraco da pirataria que elas mesmas ajudaram a cavar. Muitos artistas não queriam suas músicas sendo trocadas via P2P sem remuneração (oi, Metallica), e nós, ouvintes, queríamos conveniência e não pagar mais fortunas por uma mídia física ou um download no iTunes.
Ou seja, um contexto promissor e um terreno mais do que fértil para que um modelo de negócio como o Spotify prosperasse: uma biblioteca infinita para os fãs, gratuita ou pagando uma assinatura irrisória (em comparação aos preços dos CDs), tudo dentro da legalidade e com potencial lucrativo para os detentores dos direitos fonográficos e autorais. O sonho perfeito.
Agora, com o distanciamento de mais de uma década desde o lançamento do Spotify, em 2008, sabemos que o "sonho perfeito" pertence a uma parcela pequena do todo. Particularmente, é um tema que acompanho há anos, já escrevi algumas vezes sobre na antiga versão desta newsletter e sempre termino da mesma forma: sem conclusões.
Porque não existe uma resposta única ou simples para um problema tão complexo, que envolve muitos setores. Nem uma só linha de ação ou tomada de decisão, seja ela moral, política ou econômica. Ainda assim, saber que sua música, seu catálogo, ou simplesmente que você é uma peça dentro de uma lógica que financia a indústria bélica... não deveria ser um dilema, deveria?

No fim das contas, posso dizer que esta é uma proposta de exercício de lucidez. O que faremos com essas ideias lúcidas depois? Acertou: não sei.
O que sei é que, com o rumo que as coisas têm tomado, está mais fácil imaginar o fim da indústria fonográfica do que o fim do "modelo-Spotify", parafraseando uma ideia de Mark Fisher.
Só uma coisa é certa: a música sempre continua.