Música de anime importa
Emoção, identidade e memória: o papel fundamental da música no universo dos animes.

Se minha memória não tem me traído nos últimos 30 e tantos anos, a música de abertura de Fly, o Pequeno Guerreiro (de 1991 e originalmente Dragon Quest: Dai no Daibōken) é um dos temas de anime mais antigos que lembro de cor. Logo depois, vem a trilha sonora nacional de Os Cavaleiros do Zodíaco, que aprendi graças a uma fita K7 de procedência duvidosa, comprada numa loja “vende tudo” por um dos meus irmãos.
Quando percebi que realmente gostava de animes, passei a investir mais tempo e energia não só nas tramas e personagens, mas especialmente nas músicas. Havia ali algo de fascinante — eu precisava decorar, ter acesso, ouvir de novo a cada oportunidade. Com o passar dos anos, percebi que o que mais me atraía nessas músicas — fossem elas marcadas pelo city pop, pelo uso de sintetizadores, pelo jazz ou, mais tarde, por guitarras distorcidas — era uma melodia forte, imediatamente reconhecível, com aquela sensação muito particular: “isso é música de anime”. Claro que tal impressão está mais ligada ao subjetivo do que a algum elemento rígido. Além disso, a resposta simples é: é música de anime porque está dentro de um anime (!!!).
O que é Anisong?
Talvez você não tenha tanta familiaridade com animes, mas além das histórias e personagens — muitas vezes adaptados de mangás —, a trilha musical é um elemento-chave, a ponto de ter desenvolvido, com o tempo, um gênero próprio, chamado de Anisong (ou anison ou anime song). Por isso, não dá para ignorar a força das aberturas, encerramentos e temas principais das séries. Diferentemente de produções ocidentais, essas músicas não são apenas vinhetas: são momentos essenciais que marcam cada etapa da narrativa.
As aberturas e os encerramentos nem sempre apresentam cenas diretamente ligadas à série em si, mas servem, sobretudo, para definir o tom da narrativa, introduzir personagens e sugerir um pouco de suas personalidades — uma contextualização tanto sonora quanto visual. No decorrer da saga, essas músicas podem mudar, refletindo o amadurecimento dos personagens e a evolução da história.
Normalmente, existe uma equipe dedicada para esse trabalho — desde a agência que representa a artista responsável pela música até os desenhistas e animadores que criarão essa atmosfera. Porque é isso que a abertura precisa provocar: atmosfera.
Da origem à consolidação
O primeiro registro de uma animação japonesa com música é de 1929, mas foi com Astro Boy (Tetsuwan Atom), em 1963 — considerado o primeiro anime produzido em larga escala —, que a abertura musical realmente chamou a atenção do público. A canção, inclusive, teve letra escrita por Shuntarō Tanikawa, poeta indicado ao Nobel de Literatura.
A partir daí, as aberturas e suas músicas tornaram-se ponto fundamental de contato entre público, obra e intérprete. Com o passar das décadas, esse formato foi se sofisticando, tanto musical quanto visualmente. Dragon Ball Z marcou a transição nos anos 1980 e 1990 ao incluir o rock; Neon Genesis Evangelion popularizou o city pop com “A Cruel Angel’s Thesis”; e Sailor Moon eternizou a balada “Moonlight Densetsu”. No fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, o J-Pop e o J-Rock consolidaram-se como sonoridades centrais — tendência que persiste, como demonstram as aberturas de Attack on Titan (2013), Given (2019) ou Oshi no Ko (2023).
Essas músicas tornaram-se verdadeiros hinos, refúgios emocionais e, ao mesmo tempo, vitrines para que artistas conquistassem audiência global. Artistas emergentes e renomados se beneficiaram (e seguem se dando muito bem) ao vincular suas músicas a séries de sucesso — algo que, em certa medida, equivale a emplacar uma canção numa novela brasileira.
Bandas e artistas como YUI (Fullmetal Alchemist), LiSA (Sailor Moon), Asian Kung-Fu Generation (Naruto), L'Arc-en-Ciel (Fullmetal Alchemist), BoA (InuYasha) e Do As Infinity (InuYasha), e mais recente as bandas Centimillimental (Given) e YOASOBI (Osho no Oko), são alguns exemplos de nomes que se popularizaram no Japão e, principalmente, na América Latina por meio dos animes. Já nomes consagrados como Anri — uma das primeiras artistas a alcançar sucesso massivo com um anisong nos anos 1980, com o tema de Cat’s Eye —, Ayumi Hamasaki, que contribuiu para InuYasha, Sakura Card Captors e Nodame Cantabile, e Yoko Kanno, responsável pelas trilhas sonoras icônicas de Cowboy Bebop, Ghost in the Shell e Samurai Champloo, fizeram o caminho inverso: levaram a música mainstream japonesa para dentro do universo dos animes.
Música como personagem
Para além das aberturas e encerramentos, existe a trilha sonora incidental — aquela que acompanha as cenas e guia a narrativa — que acaba tornando-se parte indispensável da obra. Em muitos casos, a trilha não só ambienta: serve como eixo temático das relações e conflitos.
Um clássico exemplo é Naruto, cujos momentos de dor e superação são amplificados por “Sadness and Sorrow”, faixa instrumental conhecida por suas linhas melódicas emotivas e modulações que evocam tristeza e resiliência, características frequentes em trilhas de anime.
Em Nodame Cantabile (2007), o pilar central é a música erudita: obras de Beethoven, Mozart, Rachmaninoff e outros compositores clássicos são apresentadas como pontos altos de cada episódio e sempre contextualizadas historicamente, funcionando quase como aula e performance ao mesmo tempo.
Já em Beck: Mongolian Chop Squad (2004), NANA (2006), Given (2019) e Carole & Tuesday (2019), a música é parte intrínseca da trama. São animes em que as bandas e os processos criativos são motores da história. Nessas séries, a música determina relacionamentos, move as personagens a persistirem ou desistirem, proporciona refúgio e expressa as emoções mais profundas. O resultado é que, nesses universos, a música ultrapassa o papel de pano de fundo: ela é, de fato, personagem viva e autônoma dentro do enredo.
Mas por que a música de anime toca nossos corações?
Para escrever este texto, recorri às minhas memórias, ao meu repertório musical — construído ao longo de três décadas entre diversão, introspecção e trabalho — e à pergunta que nunca saiu da minha cabeça: por que a música de anime tem essa “vibe” só dela?
Como disse lá no começo, a melodia sempre foi o elemento que mais me chamou atenção — e provavelmente moldou muito do que aprecio em música até hoje: linhas melódicas marcantes e dinâmicas ousadas. E, embora hoje eu consuma animes com bem menos entusiasmo ou regularidade (na verdade, tenho reassistido obras antigas ou descoberto algumas que ficaram para trás), as músicas continuam comigo há muitos anos. Então sim, meu "paladar" musical foi profundamente influenciado por essa exposição prolongada.
Do ponto de vista musical, talvez seja essa ênfase melódica, sua progressão, a letra que aprofunda a emoção — ou tudo isso junto — que colabora para criar essa conexão emocional. E é nesse território que memórias se formam e permanecem.
Para ser honesta, não encontrei uma única resposta.
É difícil limitar o que se entende por “Anisong”, porque o termo diz mais sobre o contexto em que a música aparece — dentro de um anime — do que sobre um estilo sonoro específico. A diversidade é, aliás, uma das marcas mais potentes dessas trilhas. De um som marcado como uma marcha em Astro Boy, passando pela melodia heróica de One Piece, até o rock operístico de Attack on Titan ou o city pop contagiante de Yu Yu Hakusho, há centenas de nuances e possibilidades.
No fim das contas, o que ficou ainda mais claro para mim é que a música, em diferentes arcos e fases da história, está ali com uma intencionalidade narrativa: marcar viradas, dar tom, evocar sentimentos. Não é só um recurso estético.
Por isso, independentemente de ser um sucesso popular como Dragon Ball ou um vencedor do Oscar como O Menino e a Garça, a música serve à obra — e a quem assiste — como um dispositivo que aprofunda as emoções e a conexão com a história.
São melodias que, na maioria dos casos, são musicalmente complexas, mas emocionalmente universais.