Se não fosse Luísa, seria outra

O preço do sofrimento feminino

Se não fosse Luísa, seria outra
Luísa Sonza (Divulgação)

A narrativa bíblica, sob uma perspectiva judaico-cristã, coloca a mulher no centro da maior tragédia humana: o pecado original. A entrada do mal no mundo, que maculou a humanidade, é atribuída à desobediência feminina.

“A divina companheira, tirada da costela de Adão, mãe de todos os viventes, não resiste à sedução da serpente, come do fruto proibido e ainda induz seu companheiro, fazendo com que ele também experimente a desobediência. O fruto da árvore do centro do jardim faz com que descubram a vergonha original; ambos se percebem nus e passam a se cobrir, escondendo-se do Criador. Mas como nada se esconde ao olhar de Deus, os dois são descobertos, julgados e condenados a deixar o Jardim do Éden. Pelo pecado de Eva, a humanidade é expulsa do paraíso.” (MELO, A; RIBEIRO, P. 2021).

A culpa mítica da mulher, assim como o errar e sofrer, são características que se tornaram inerentes à “natureza feminina” e avançaram ao longo do tempo, revelando modelos que guiam e estruturam diversas organizações sociais. Para Valéria Pires (2008), a matriz patriarcal sobre a qual muitos mitos envolvendo a imagem da mulher foram construídos não apenas se mantém viva, mas também perpetua a ideia de que as mulheres devem permanecer nas condições dessas personagens míticas (ex.: Eva, Iara e Lilith), ou seja: pecadoras, culpadas, sofredoras, traidoras, sedutoras, frágeis, submissas, entre outras.

“Para Valéria Pires (2008, p. 9), ‘desde épocas remotas, os homens têm manipulado as mulheres para resolver seus problemas políticos, econômicos, sociais e emocionais. A elas muito tem sido negado ou proibido. Essa repressão foi oportuna para que a situação de domínio se mantivesse imutável’. Como um recorte mais específico, ousamos apontar para uma culpa atribuída às mulheres e/ou criada e assumida por elas em função de contextos de condenação.” (PIRES, V. 2008, p. 9; MELO, A; RIBEIRO, P. 2021).

A estrutura social e os lugares simbólicos que as mulheres habitaram, e ainda habitam, em algumas narrativas da história ocidental (MELO, A; RIBEIRO, P. 2021), frequentemente as conduziram para a vida privada. “Só podiam sair de casa para serem batizadas, enterradas ou se casarem. Sua honra tinha de ser mantida a qualquer custo” (DEL PRIORE, 2014). Por compartilharem da essência de Eva, as mulheres precisam ser permanentemente controladas.

Esses modelos sociais ainda são reforçados e, quando confrontadas, as mulheres são inseridas em um espaço onde há permissão para o julgamento, a desqualificação e a desumanização.


Como uma artista pode entrar para a história? Sofrendo

A primeira transmissão radiodifundida no Brasil ocorreu em 7 de setembro de 1922, no Rio de Janeiro, em comemoração aos cem anos de emancipação do país. Pouco depois, conforme aponta um relatório da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT, 2010), o meio se consolidou como fonte de informação e cultura erudita, além de plataforma de ensino à distância, como no caso da Rádio do Ministério da Educação. No entanto, nos anos 30, o panorama começou a mudar, incluindo o entretenimento informal, com programas humorísticos, de auditório e novelas.

Esse status foi consolidado, segundo Hupfer (2009), em março de 1932, quando o então presidente Getúlio Vargas promulgou o Decreto Lei nº 21.111, que estabeleceu regulamentos para o exercício da radiodifusão no país e incluiu, entre as diretrizes, permissões para a veiculação de propaganda.

A sucessão de modificações atraiu a atenção do grande público, o que significou um aumento na audiência e, consequentemente, na base receptora para mensagens publicitárias.

O rádio comercial e a popularização do veículo implicaram a criação de um elo entre o indivíduo e a coletividade, capaz não apenas de vender produtos e ditar modas, mas também de mobilizar as massas, levando-as a uma participação ativa na vida nacional. Os avanços da industrialização ampliaram o mercado consumidor, criando condições para a padronização de gostos, crenças e valores (HUPFER, 2009, p. 31).

Com isso, a imagem em voga na época era contraditória: apesar do baixo poder de consumo das classes mais populares, elas já não eram consideradas pelos veículos de comunicação como marginais do mercado consumidor, exatamente por serem entusiastas dos programas de lazer – e não altamente culturais – dos canais massificados, estendendo o raio de alcance deles. Novamente segundo Hupfer (2009), no caso do rádio, tal potencial fez com que empresários passassem a investir de 50% a 70% das verbas publicitárias nesses espaços. O restante ia para os impressos, que perdiam apelo público e ainda contavam com baixas tiragens nas bancas. (FONSECA, 2014).

Nos anos 1940, o entretenimento já era um dos principais atrativos para anunciantes e público. Os shows de calouros e as radionovelas conquistaram o gosto popular, e o tempo de escuta das emissoras cresceu.

O quadro de artistas contratados pelas rádios nacionais se transformou em um catálogo de produtos simbólicos capazes de atrair a atenção da audiência e conferir valor comercial ao veículo com maior alcance público nas primeiras décadas do século XX.

O Trio de Ouro, formado por Dalva de Oliveira, Nilo Chagas e Herivelto Martins, foi um desses produtos simbólicos. O processo começou nas emissoras de rádio, nos estúdios, “levando vozes e composições para a audiência; depois, de forma ampla, através das mídias complementares que deram rostos aos timbres favoritos do público e de programas de auditório que os colocavam frente aos ouvintes” (FONSECA, 2014).

O trio obteve projeção nacional, mas foi Dalva de Oliveira e Herivelto Martins que atraíram a atenção pública.

Em 1949, quando a cantora e compositora Vicentina de Paula – ou Dalva de Oliveira – se separou do marido [Herivelto Martins], saiu de casa e colocou os filhos em um colégio interno, protagonizou uma sucessão de cenas escandalosas dentro do mesmo drama: o fim do casamento com Herivelto Martins, o homem com quem integrou o Trio de Ouro. Para o casal, uma ruptura matrimonial e profissional. Para o público, tensão em novela que saiu das quatro paredes e tomou o rádio e a imprensa da época tendo Dalva como intérprete ora da vilã que assumia deslizes ao cantar ‘Errei sim’; ora da mocinha amargurada de ‘Que será’. No entanto, o maniqueísmo em torno da figura de Dalva não se restringiu ao aspecto sentimental (FONSECA, 2014).

Após a separação, Herivelto e Dalva protagonizaram um duelo musical que “enriqueceu os dois e forneceu pauta para jornais e revistas da época” (FONSECA, 2014). Um acusava o outro de traição e os culpava pelas mazelas do casamento. É importante destacar que, antes de solicitar o desquite, Dalva foi vítima de violência doméstica e flagrou inúmeras traições de Herivelto.

De um lado, compositores que cediam suas obras para Dalva e enfureciam os ataques públicos do ex-marido. Do outro, o próprio Herivelto, ressentido com a suposta trapaça não apenas da esposa, mas de ex-parceiros musicais. Foram quase dois anos de ataques-revides explícitos que, não fossem o estilo “fossa” (em sambas ou boleros), o cenário carioca e o intervalo entre uma composição e outra, bem poderiam ser comparados aos repentes nordestinos em dinâmica alimentada pelas próprias gravadoras (FONSECA, 2014).

Não há unanimidade quanto ao ano de trégua. No entanto, no fim de 1950, os lançamentos com ofensas ficaram mais espaçados. Enquanto Dalva de Oliveira ascendia em sua carreira solo, Herivelto via o Trio de Ouro afundar e seu prestígio desaparecer, já não desfrutando mais da mesma fama entre o público (FONSECA, 2014).

Em 15 de janeiro de 1951, o jornal carioca Diário da Noite passou a publicar diariamente, em capítulos, como se fosse uma novela, a seção “Porque abandonei Dalva de Oliveira”. “A sequência de 22 artigos associados direta e exclusivamente a Herivelto Martins contava com a ajuda de David Nasser como ghostwriter dos textos veiculados sob a forma de memórias e desabafos” (FONSECA, 2014).

Ao longo daquelas semanas, Herivelto e Nasser construíram a imagem de Dalva de Oliveira para a opinião pública. Algo próximo de Eva, que seduziu, traiu e pecou. Supostos adultérios que teoricamente ficariam restritos aos limites domésticos foram convertidos em peças textuais com o suporte de um veículo de massa, que carregava em seus títulos adjetivos como “rainha do despudor” e “Messalina do século XX”.

Os artigos do Diário da Noite, sob o viés do gênero, funcionam, também, como acusações e sentenças a um corpo sexuado, nomeado e ativo socialmente em um núcleo com supremacia masculina e valores vigentes que, transgredidos, associariam Dalva de Oliveira a Eva ou à adúltera, na contramão da virtuosa Maria. Todavia, quem realmente foi atacada? Dalva, a cantora; ou Vicentina, a mulher? As falhas alegadas feriram a moralidade do indivíduo como mãe, como esposa, como figura pública ou todas as opções? O “eu” acusador cruza que textos e argumentos? Manifesta que posicionamentos? Fala como marido, parceiro musical ou homem socialmente adepto aos princípios do moralismo falocêntrico? (FONSECA, 2014).

No início da separação, quando o que era público eram apenas as letras de canções trocadas, Dalva vendeu muitos discos e seu nome ficou mais conhecido. No entanto, quando passou por todo o processo de difamação veiculado nas páginas de um jornal de grande circulação, sua carreira sofreu desgastes.

Dalva faleceu em 1972.


Em 2002, Britney Spears protagonizou, com Justin Timberlake, um dos términos mais publicizados da época. Depois de terminar com Britney por mensagem de texto, Justin passou a insinuar em entrevistas, e mais tarde com o videoclipe e a música "Cry Me a River", uma traição por parte da cantora.

A repetição da narrativa, reforçando a ideia de que o “garoto de ouro da América foi traído pela cantora pop excessivamente sexy”, foi primordial para a promoção do primeiro disco solo de Justin. A imagem da mulher sofredora que não resiste ao erro aparece repaginada em seu respectivo contexto, e extremamente lucrativa.


Se eu fosse Luísa Sonza

LEIA
(…) o documentário não se demora muito na música. Mostra o Rivotril que a artista toma, uma sequência excruciante de shows, as ondas de hate. Talvez a ideia fosse mudar a opinião de quem a odeia – o que geralmente é em vão –, transformando raiva em piedade.

O resultado é um meio do caminho estranho, quase sádico. Ficamos em uma encruzilhada como espectadores: devemos admirá-la ou nos compadecer? Luísa foi vítima de muitas coisas terríveis, mas não é uma coitada. Sofre, mas tem privilégios. - Dora Guerra

Nessa encruzilhada, percebemos que o sofrimento de Luísa, descortinado desde o primeiro minuto da produção, foi envelopado e vendido para a Netflix. Um esforço roteirizado para reforçar a ideia de que foi seu compromisso com a arte, e não a publicização intensa de sua vida privada, que alavancou sua carreira musical. Ao inserir Luísa exaustivamente como uma jovem repleta de referências culturais e artísticas para forjar a imagem de artista excepcional e conceitual, o documentário expõe o fato de que, se não fosse Luísa, seria outra.

Dizem que quando uma artista pop assina um contrato milionário, ela é colocada em uma “gaiola de ouro”: recebe investimentos altíssimos rumo ao sucesso, mas perde o poder de decisão. Se torna coadjuvante – e ilustração – de sua própria carreira. Ao fim do documentário, a impressão subliminar é de que Sonza está presa na gaiola de ouro.

Ela não se sente bem durante as gravações; não quer fazer tantos shows em sequência, mas faz; não quer aqueles prazos para o álbum, mas os segue; nem sequer aparenta querer aquele documentário. A gaiola de ouro não costuma ser tão transparente. - Dora Guerra

Não podemos personificar em Luísa uma estrutura que lucra com narrativas trágicas de mulheres. No entanto, diferente de Dalva, e até mesmo de Britney, que mais perderam do que ganharam, Luísa parece saber que lucra com o próprio sofrimento.


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